O complexo mustierense em Portugal

O Mustierense é o único tecno-complexo do Paleolítico Médio reconhecido e caracterizado em Portugal. Alguns dos conjuntos industriais referidos neste trabalho foram, contudo, incluídos na designação mais genérica de Paleolítico Médio, por falta de elementos de pormenor. As estações de ar livre refer...

Full description

Bibliographic Details
Main Author: Cardoso, João Luís (author)
Format: article
Language:eng
Published: 2014
Subjects:
Online Access:http://hdl.handle.net/10400.2/3257
Country:Portugal
Oai:oai:repositorioaberto.uab.pt:10400.2/3257
Description
Summary:O Mustierense é o único tecno-complexo do Paleolítico Médio reconhecido e caracterizado em Portugal. Alguns dos conjuntos industriais referidos neste trabalho foram, contudo, incluídos na designação mais genérica de Paleolítico Médio, por falta de elementos de pormenor. As estações de ar livre referenciadas parecem corporizar, nuns casos, face à enorme quantidade de vestígios, estacionamentos intensivos e prolongados, de tipo residencial, favorecidos pela abundância de matérias-primais disponíveis. É o caso das estações dos arredores de Lisboa e das existentes na margem esquerda do estuário do Tejo. Nenhuma foi objecto de escavações em extensão, impossibilitando a confirmação desta situação, por um lado e, por outro, o conhecimento da organização interna do espaço habitado. Outras estações de ar livre, implantadas em terraços fluviais, ocupam áreas menores e configuram actividades cinegéticas especializadas, talvez de carácter sazonal: é o caso de Santo Antão do Tojal, onde provavelmente se capturou o elefante, da Foz do Enxarrique, especializada na caça ao veado e de Vilas Ruivas, onde os restos faunísticos não se conservaram. Naquela última estação, foram identificadas estruturas habitacionais, atribuídas a pára-ventos (wind-breaks), ou a tapumes de caça (hunting-blinds), associadas a lareiras e a possíveis buracos de poste; estes testemunhos juntam-se às lareiras identificadas na Gruta da Buraca Escura e no sítio de ar livre de Santa Cita. As grutas revelam por vezes estratigrafias extensas, denunciando permanências prolongadas e recorrentes, o que configura a situação de corresponderem a sítios de tipo residencial, sem prejuízo de também se conhecerem grutas com ocupações episódicas, relacionadas com actividades cinegéticas ou de exploração de recursos geológicos. A Gruta da Oliveira e a Gruta Nova da Columbeira estão no primeiro caso. Evidencia-se a alternância da sua ocupação por carnívoros e pelo homem. A variedade dos recursos cinegéticos identificados mostra uma economia de subsistência não especializada, capturando-se presas de grande, médio e pequeno porte. Entre as últimas encontra-se o coelho, espécie endémica, então muito abundante, cuja caça era acompanhada pela da tartaruga terrestre, a qual atinge expressão significativa na Gruta Nova da Columbeira. Os recursos aquáticos constituíam parte significativa da dieta em grutas próximo do litoral, como a Gruta de Ibn Amar, sobre o estuário actual do rio Arade e a Gruta da Figueira Brava. Nesta última, a importância desse contributo alimentar é evidenciada pela diversidade e abundância das espécies de moluscos identificados, acompanhados de crustáceos e até de mamíferos marinhos, como a foca e o golfinho. O facto de a componente de pesca e recolecção não se ter reconhecido em grutas fora da linha de costa actual evidencia a área relativamente limitada de captação de recursos inerente a cada gruta, sem prejuízo de os seus habitantes, dentro dos respectivos territórios, conhecerem um alto grau de mobilidade, o qual é sublinhado pela diversidade de recursos explorados. Esta situação também se aplica à utilização dos recursos geológicos. Com efeito, nota-se que as matérias-primas mais utilizadas, são o quartzo, o quartzito e o sílex, em percentagens variáveis consoante a sua própria disponibilidade na envolvência imediata das grutas, não ultrapassando um raio superior a 10 km. Noutros casos, como na Gruta da Figueira Brava e na Gruta do Escoural, observou-se uma incidência muito forte na utilização do quartzo filoneano, apesar da sua má qualidade, em virtude de ser a rocha disponível no território adjacente. Do ponto de vista tecnológico e tipológico, os três conjuntos reconhecidamente datados do Mustierense Final do território português mais importantes: Gruta da Oliveira; Gruta Nova da Columbeira e Gruta da Figueira Brava, não evidenciam qualquer indício de evolução para indústrias do Paleolítico Superior notando-se, ao contrário, um reforço das suas características mustierenses. Os mais antigos materiais mustierenses estratigrafados provêm da Gruta da Furninha, datados de ca. 80 Ka calBP, encontrando-se associados a hiena raiada (Hyaena hyaena prisca). Trata-se de espécie de clima quente, já então uma relíquia a nível europeu, compatível com a ocorrência, no cordão conglomerático formado ao longo do litoral da serra da Arrábida a 5-8 m de altitude, contemporâneo daquele depósito, de Patella safiana, espécie de águas quentes, que actualmente não ultrapassa a latitude do litoral atlântico marroquino, acompanhada de Pectunculus bimaculatus, de distribuição mediterrânea. Desconhece-se a evolução paleoclimática entre a época de formação do depósito fossilífero da Furninha e cerca de 45 Ka calBP. Tal é a cronologia obtida pelo radiocarbono para as jazidas de interesse paleontológico de Vale de Janela, no litoral da Estremadura e de São Torpes, no litoral alentejano. Apesar de existirem em ambas as jazidas espécies de clima temperado mais fresco e húmido que o mediterrânico, é de salientar a manutenção do género Myrica, de características termófilas. Com efeito, a tendência para um clima temperado fresco é compatível, para a referida época, com a presença de cabra montês nos níveis mustierenses inferiores da Gruta da Oliveira, anteriores a 43/42 Ka calBP. A partir desta época o clima parece tormar-se progressivamente mais quente, assumindo características mediterrâneas: tal é indicado pelo desaparecimento da cabra montês na Gruta da Oliveira, acompanhada (Nível 8) de associação de roedores de características mediterrâneas datada de ca. 38/37 Ka calBP, compatível com a presença de Cepaea nemoralis na Lapa dos Furos, ca. de 40 Ka calBP. A partir de 36 Ka calBP as condições climáticas parecem modificar-se progressivamente no sentido do arrefecimento: a cabra montês reaparece nas cadeias montanhosas atlânticas de baixa altitude (Gruta Nova da Columbeira e Gruta da Figueira Brava); o arrefecimento climático, corresponde a condições um pouco mais frias que as existentes actualmente na zona, mas comparáveis às do litoral cantábrico, é comprovado pelo conjunto de indicadores disponíveis na Gruta da Figueira Brava, o mais completo até ao presente reunido. Mas a presença, até ca. 34-31 Ka calBP, na Gruta Nova da Columbeira, da tartaruga terrestre, espécie ali abundante, que requeria temperaturas da ordem dos 20 a 30 graus centígrados ao longo do Verão, para a incubação dos ovos, indica que o arrefecimento clumático não poderia ter sido muito acentuado. Por outro lado, a microfauna do Nível K da gruta do Caldeirão, com Allocricetus bursae, demonstra a progressão até ao ocidente peninsular das condições estépicas cerca de 35 Ka calBP. Tais condições prevaleciam aquando do surgimento na região, talvez ca. 35-34 Ka calBP, das primeiras indústrias do Paleolítico Superior, pertencentes já a um estádio evoluído do Aurignacense. É neste quadro paleoclimático particular ao ocidente e sudoeste peninsular que se devem entender sobrevivências tardias de certas espécies, como o elefante antigo, presente na Foz do Enxarrique cerca de 33,6 Ka calBP o qual, oferecendo condições geográficas favoráveis, favoreceu também a tardia presença dos últimos Neandertais e, com eles, do Mustierense Final no território português.