Summary: | Todos os seres humanos, desde que nada de anormal lhes aconteça, tornam-se peritos numa atividade extraordinária: conseguem acionar no cérebro (na mente) de outros seres humanos associações de imagens e jogos de conceitos que provocam apelos, ordens, sensações, informações, emoções, lembranças e um sem fim de estados muito complexos inter-relacionados com uma atividade que se designa por linguagem. Esta faculdade realiza-se através de um conjunto de processos e técnicas a que chamamos “línguas”. E embora elas constituam a atividade mais complexa criada em sociedade, o espantoso é que as línguas não precisam de manuais de instruções. Ainda mal sabemos estar de pé, ainda não conseguimos sequer apertar os botões da roupa ou os cordões dos sapatos e já apresentamos uma destreza inacreditável no uso e no domínio dessa atividade tão complexa –a fala. Desde o soltar sons, aparentemente sem nexo, ao palrar como papagaios atarantados vai uma curta e impressionante caminhada de que não temos consciência. Por ser assim, por ser vista como uma coisa natural que se desenvolve automaticamente com o próprio desenvolvimento físico e cognitivo de cada pessoa, a linguagem costuma ser um dos últimos problemas a preocupar os indivíduos e as sociedades. Acresce a isto o facto de a linguagem humana ter sido, na história do pensamento, associada à “mente”, ao “espírito”, entidades nebulosas, misteriosas, impossíveis de dissecar e analisar e, por isso, postas de lado no esforço de se tornarem objeto de investigação e da ciência. Não admira, portanto, que as Ciências da Linguagem tenham sido das últimas áreas a serem encaradas como domínio científico. O panorama tem mudado nas últimas décadas. As descobertas sobre a comunicação humana (funcionamento do cérebro e processos cognitivos) e sobre a comunicação não humana (animais e sistemas artificiais de inteligência e comunicação) transformaram o desejo de querer perceber o funcionamento das línguas naturais numa das metas mais aliciantes e desafiadoras entre os novos paradigmas da ciência atual. Este manual não pretende apresentar-se como divulgador de nenhuma destas áreas de ponta que mantêm, cada vez mais, uma ligação com as Ciências da Linguagem, mas antes ser uma base de apoio que possibilite a compreensão do funcionamento das línguas naturais e explique o surgimento do interesse e da constituição pela Linguística como área científica. As questões aparentemente ingénuas (ou mesmo ingénuas) que muitas vezes servem de ponto de partida têm por finalidade não se desviar das ideias e dos mitos, muitas vezes simplistas, que comummente são aceites. Poderão parecer banalidades ao linguista, mas não é, obviamente, a ele que elas se destinam; apenas a tentar desfazer mitos e ingenuidades que o senso comum toma como verdades e certezas e que impedem a construção de uma conceção correta da essência do que é uma língua natural. Assim, procurar-se-á esclarecer os conceitos de linguagem e de comunicação e da especificidade da linguagem verbal entre as várias formas que se podem chamar linguagem. Analisar-se-á a relação existente entre os planos gráfico e oral das línguas, em que medida um pode representar o outro na constituição da palavra ou signo linguístico e ainda como a leitura implica uma espantosa habilidade. E se a palavra é a unidade básica das línguas, o que é que verdadeiramente a caracteriza, que especificidades é que lhe dão as particularidades que nós atribuímos à linguagem humana? E como se verifica a relação entre a sociedade e a “sua” língua? Há obrigatoriedade ou liberdade? Há só uma forma de usar a língua ou mais? Valem todas o mesmo? As línguas são estáveis ou mudam? Por fim, apresentar-se-ão os primeiros passos que permitiram que a linguagem verbal pudesse constituir-se como o objeto para um novo paradigma científico. Veremos como a busca de uma hipotética língua primitiva levou à descoberta de que as línguas eram sistemas organizados dotados de leis próprias e internas e de como um desses investigadores, Ferdinand de Saussure, propôs as bases em que, não apenas as línguas mas o fenómeno da linguagem, deveria ser o objeto específico de uma nova ciência –a Linguística ou, hoje em dia mais latamente, as Ciências da Linguagem.
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