Summary: | Entre os séculos XV e XVII, várias obras de diferentes géneros da literatura canónica peninsular, nomeadamente a literatura dramática, incluíram relações transtextuais com o romanceiro antigo. A dramaturgia de expressão portuguesa não é excepção: tanto o teatro dito popular, de matriz vicentina, como o teatro clássico quinhentista absorveram versos ou elementos configuracionais dos romances velhos, fenómeno identificado por Teófilo Braga, no final do século XIX, e sistematizado por Carolina Michaëlis de Vasconcelos, no início do século XX, em “Romances Velhos em Portugal” (1907-1909). Os procedimentos criativos que estabeleceram estas relações com o romanceiro são variados e respondem a finalidades concretas por parte de cada autor e cada obra. Um dos mais recorrentes é o engaste de versos romancísticos, mais ou menos transformados, no seio do texto dramático, e como tal tem merecido particular atenção por parte da crítica contemporânea. No entanto, as peças dramáticas de quinhentos conheceram também outras formas de intertextualidade, como a alusão implícita, e mais raramente de hipertextualidade integral, ou maciça, segundo a conceptualização proposta por Gérard Genette (1982). A Tragédia do Marquês de Mântua (1692), auto de Baltasar Dias (c. 1515 – c. 1580), é um desses raros casos de hipertextualidade entre o romanceiro e a literatura portuguesa quinhentista. O dramaturgo transpôs para a cena um ciclo de romances carolíngios sobre o assassinato de Valdovinos, sobrinho do Marquês de Mântua, Danes Ogeiro, e a demanda de justiça que este leva a cabo junto do imperador Carlos Magno. Para o sucesso da derivação hipertextual concorre um conjunto de transformações, essencialmente formais, aplicadas pelo dramaturgo ao material romancístico (hipotexto), num processo de transmodalização que deixa perceber, por um lado, o rigor e destreza da criação literária executada pelo poeta, coerente com o modelo sem deixar de tomar as suas liberdades na introdução de inovações, e por outro lado, a potencial relação de cumplicidade com um público inteirado da matéria de base, disponível para concretizar com esse conhecimento o texto baltasariano. A presente dissertação propõe, então, uma abordagem ao drama à luz da teoria da transtextualidade. Através de um estudo detalhado dos procedimentos executados por Baltasar Dias na sua adaptação dramática dos romances do Marqués de Mantua, ficaremos em condições de reavaliar o estatuto da obra e do autor no panorama das letras de quinhentos. O interesse crítico por Baltasar Dias sempre foi escasso, mas a perspectiva, aqui proposta, dos recursos técnicos que soube utilizar com engenho pode contribuir para uma reabilitação do autor, ao desconstruir a imagem prevalecente de Baltasar Dias como mero tradutor de romances castelhanos. Este estudo procura também uma aproximação à popularidade dos romances carolíngios, testemunhos das raízes épicas do romanceiro. A familiaridade do público quinhentista com o universo configuracional carolíngio, isto é, com as personagens, lugares e intrigas oriundos da épica franca, segundo o conceito proposto por João David Pinto Correia (1993), é atestada pela ampla divulgação de cancioneiros e folhetos de cordel contendo romances de teor carolíngio, e confirmada pela incorporação de elementos seus em várias obras literárias. Baltasar Dias, todavia, não se limita a incluir na sua peça elementos carolíngios em jogos alusivos de carácter pontual; antes constrói, a partir desses elementos, a sua Tragédia, situada na França medieval e protagonizada por alguns dos Doze Pares. Com isto mostra que o imaginário épico-cavaleiresco ainda vigora com valor moralizante em meados do século, antes de enfrentar a decadência que conduzirá a cavalaria feudal às paródias quixotescas.
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