Resumo: | Introdução: O lupus eritematoso sistémico (LES) é uma doença autoimune crónica do tecido conjuntivo, de etiologia desconhecida, que afeta preferencialmente mulheres jovens. Ao longo dos últimos anos, tem-se verificado um aumento quer da prevalência quer da incidência de LES a nível global. Estudos europeus apontam para uma prevalência de 37 a 123,4 casos por 100.000 pessoas, com uma incidência de 1,4 a 8,6 casos por 100.000 pessoas por ano. Apesar dos notáveis avanços que se têm verificado na monitorização e tratamento, o LES mantém-se uma doença com um impacto significativo na qualidade de vida, capacidade produtiva e na esperança média de vida. Cerca de um terço dos doentes apresenta envolvimento oftalmológico, o qual pode preceder outras manifestações sistémicas, podendo afetar potencialmente qualquer estrutura do globo ocular, anexos e órbita. O envolvimento das estruturas do segmento posterior, particularmente da retina e coroideia, destaca-se quer pela sua potencial gravidade em termos de prognóstico da função visual quer pela sua relação com a atividade sistémica da doença. Para além das manifestações oftalmológicas relacionadas com a atividade inflamatória da doença, salientam-se ainda as resultantes de efeitos secundários da terapêutica, nomeadamente da corticoterapia e dos antimaláricos. O envolvimento do sistema nervoso, designado LES neuropsiquiátrico (LES-NP), é frequente e com graus de gravidade muito distintos. Trata-se de uma entidade complexa, de etiologia multifatorial, que se associa a um significativo aumento da morbilidade e mortalidade. No entanto, vários estudos com exames de imagem estruturais e funcionais do sistema nervoso central, bem como estudos envolvendo testes cognitivos demonstraram uma proporção anormalmente elevada de alterações em indivíduos com LES assintomático, sem critérios de LESNP. Estudos populacionais revelam igualmente uma incidência aumentada de demência em doentes com LES, comparativamente a indivíduos saudáveis da mesma idade e sexo. A tomografia de coerência ótica (OCT) é um exame não invasivo que permite a obtenção de imagens de alta resolução da retina, coroideia e nervo ótico. Nos últimos anos, a evolução desta tecnologia permitiu a criação de softwares capazes de identificar e medir as várias camadas da retina e coroideia com elevada precisão e fiabilidade. Este projeto teve como objetivos principais a realização de um estudo epidemiológico das manifestações oftalmológicas associadas ao LES e a identificação de alterações estruturais na camada de fibras nervosas retiniana peripapilar (pRNFL), nas diferentes camadas celulares maculares e na coroideia em doentes com LES sem envolvimento oftalmológico, em comparação com indivíduos sem doença autoimune. Os doentes com LES foram posteriormente seguidos ao longo de pelo menos um ano, de forma a estudar a evolução das referidas alterações com o tempo. Pretendeu-se, igualmente, avaliar a relação das alterações estruturais retinianas e coroideias com fatores demográficos, oculares e sistémicos. Métodos: Esta investigação decorreu entre agosto de 2017 e agosto de 2019, no Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central e incluiu um estudo transversal, um estudo de casocontrolo e um estudo de coorte prospetivo. Numa primeira visita (V0), foram observados 161 doentes com LES, provenientes da Consulta de Doenças Autoimunes. Documentaram-se as características demográficas e clínicas e procedeu-se ao recrutamento dos participantes para comparecerem na visita V1 a fim de integrarem os estudos de caso-controlo e de coorte prospetivo. Recrutaram-se, igualmente, 50 indivíduos sem doença autoimune para o grupo controlo, provenientes da Consulta Geral de Oftalmologia. Todos os participantes foram submetidos a uma avaliação oftalmológica completa, que incluiu a realização de OCT de domínio espectral (SD-OCT) com e sem o software Enhanced Depth Imaging (EDI). Os doentes com LES atualmente ou previamente medicados com hidroxicloroquina (HCQ) realizaram também perimetria estática computorizada 10-2 e autofluorescência fundoscópica, para excluir toxicidade macular. Após segmentação automática da imagem de SD-OCT, registou-se a espessura da pRNFL, a nível global e nos seis setores peripapilares. A espessura macular total e das várias camadas celulares foi também determinada nas nove áreas Early Treatment Diabetic Retinopathy Study (ETDRS). A espessura coroideia foi medida manualmente em treze localizações: subfoveal e outros três pontos, com intervalos de 500 μm, nas direções superior, inferior, nasal e temporal relativamente à fóvea. No final do período de seguimento, os doentes com LES que integraram o estudo de coorte prospetivo repetiram a referida avaliação – visita V2. Apenas um olho de cada indivíduo foi aleatoriamente selecionado para análise nos estudos de caso-controlo e de coorte prospetivo. Na análise estatística foi considerado um nível de significância α=0,05. Resultados: A avaliação dos doentes em V0 revelou que 31,1% apresentavam pelo menos uma manifestação oftalmológica potencialmente atribuível ao LES. A manifestação mais frequente foi a síndroma de olho seco (12,4%), seguida da catarata (11,2%) e toxicidade macular por HCQ (11,2%). Entre os doentes com maculopatia por HCQ, dois apresentaram um padrão de SD-OCT atípico. Cinco doentes tinham glaucoma (3,1%), dois doentes (1,2%) apresentavam retinopatia lúpica e apenas um apresentava coroidopatia lúpica (0,6%). Para a visita V1, foram recrutados 68 doentes com LES e 50 indivíduos sem doença autoimune (grupo controlo). Verificou-se que a pRNFL era significativamente mais fina nos doentes com LES a nível global (p=0,026) e nos setores temporal superior (p=0,007) e temporal (p=0,037), comparativamente ao grupo controlo. Considerando apenas os doentes com LES, verificou-se que aqueles cronicamente medicados para a hipercolesterolémia, hipertensão arterial ou com anticoagulantes apresentavam uma redução significativa da pRNFL. Comparativamente aos controlos, os doentes com LES apresentaram uma redução significativa da espessura da camada de fotorrecetores em cinco áreas ETDRS (p<0,05). Por outro lado, doentes com menor duração da doença apresentaram uma maior redução da espessura desta camada em todas as áreas estudadas. Considerando apenas o grupo de doentes com LES, verificou-se uma associação negativa significativa entre a espessura desta camada e o diagnóstico de LES-NP, índice de atividade sistémica, medicação crónica para hipercolesterolémia e para a hipertensão arterial. Não se verificaram diferenças com significado estatístico entre os grupos de estudo na espessura retiniana total bem como nas restantes camadas maculares. Relativamente à espessura coroideia, não se verificaram diferenças estatisticamente significativas entre doentes com LES e controlos. Contrariamente aos indivíduos do grupo controlo, nos doentes com LES verificou-se uma alteração do normal padrão de distribuição topográfica da espessura coroideia no polo posterior. Por outro lado, apenas neste grupo a espessura coroideia não apresentou variações significativas com os valores de pressão arterial média. A análise de regressão linear multivariável considerando apenas o grupo de doentes com LES revelou uma associação negativa entre a espessura coroideia e a medicação crónica com anticoagulantes, bem como com o diagnóstico de nefrite lúpica, em várias localizações. Dos 68 doentes avaliados na visita V1, 65 compareceram na visita V2 (attrition rate de 4,6%). O tempo mediano de seguimento foi 12 meses. Comparativamente a V1, a análise da pRNFL revelou uma redução da espessura a nível global (p=0,006) e no setor temporal inferior (p=0,017). Doentes medicados à partida com anticoagulante ou anti-hipertensor apresentaram uma redução da espessura desta camada em algumas localizações. Não se verificaram diferenças estatisticamente significativas na espessura das diversas camadas maculares ou coroideia no final do período de seguimento. Conclusões: A avaliação clínica dos doentes com LES demonstrou que aproximadamente um terço apresenta envolvimento oftalmológico, o que está em linha com os dados da literatura existente. Porém, no nosso estudo verificou-se uma redução das manifestações relacionadas com a atividade sistémica da doença, particularmente da retinopatia e coroidopatia lúpicas, comparativamente a estudos anteriores. Em contrapartida, observou-se um aumento da prevalência de catarata e glaucoma, bem como de maculopatia por HCQ. Estes resultados sugerem uma mudança de paradigma das manifestações oftalmológicas associadas ao LES. Esta tendência deve-se provavelmente a uma combinação de fatores que incluem um melhor controlo sistémico da doença e consequente aumento da sobrevida, fruto dos avanços terapêuticos observados ao longo dos últimos anos. A monitorização mais regular e a extraordinária melhoria dos métodos de diagnóstico oftalmológicos também contribuíram para estes resultados. Os doentes com LES sem manifestações oftalmológicas apresentaram uma redução da pRNFL global e nos setores temporal superior e temporal, comparativamente aos indivíduos sem doença autoimune. A redução da espessura desta camada, particularmente nos setores temporais, poderá constituir um sinal indireto de neurodegeneração, tal como descrito para outras patologias. A análise de regressão linear multivariável nos doentes com LES sugere que os fatores de risco cardiovascular têm um efeito potenciador das referidas alterações neurodegenerativas. Os doentes com LES apresentaram, igualmente, uma redução da camada de fotorrecetores macular, comparativamente ao grupo controlo. Alterações subclínicas da circulação coroideia ou a produção de autoanticorpos específicos poderão justificar a redução seletiva desta camada. A análise sugere também que a lesão dos fotorrecetores será mais marcada em doentes com LES que apresentem envolvimento neuropsiquiátrico, pior controlo sistémico e fatores de risco cardiovascular. Parece, por outro lado, existir uma recuperação parcial da espessura desta camada com o tempo de diagnóstico, a qual poderá dever-se a um processo de remodelação retiniana. Relativamente à espessura coroideia, as alterações encontradas nos doentes com LES comparativamente aos controlos apontam para a existência de alterações subtis de espessura, que poderão estar associadas a uma deficiência dos mecanismos de autorregulação vascular. A redução da espessura coroideia observada nos doentes medicados com anticoagulantes e com antecedentes de nefrite lúpica sugere a existência de um maior dano microvascular coroideu nestes subgrupos, que poderá refletir um estado mais avançado de lesão noutros territórios microvasculares sistémicos. O estudo longitudinal confirmou o caráter progressivo da redução de espessura da pRNFL nos doentes com LES. Uma vez mais se verificou uma associação negativa entre a espessura desta camada e a medicação crónica, quer com anti-hipertensores, quer com anticoagulantes, enaltecendo a importância dos fatores de risco cardiovascular. Este estudo vem reforçar a hipótese da existência de um processo de neurodegeneração retiniana progressivo em doentes com LES.
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